10/07/2017

Amnésia

Este conto foi criado à partir do desafio imagem/palavra do grupo: Café com Blog. A palavra recebida foi: LEMBRANÇAS. Além da palavra recebida, a reportagem do Programam Fantástico sobre o roubo dos queijos também foi inspiradora. 

Fonte: Grassroots Gourmet














         “Preciso escrever” pediu quase implorando
Mas não teve jeito, minha vontade sempre prevalecia.
No entanto, tivemos que retornar assim que chegamos ao restaurante. Um vendaval muito forte fazia com que algumas pessoas que insistiam estar ali, jantassem forçosamente à luz de velas. Eu não quis ficar. 
Ele me abraçou na mesma hora que chacoalhou o guarda-chuva para o ar e ele se abriu. Fomos em direção ao carro e seguimos para casa debaixo de uma chuva forte.
Senti-me culpada por ter insistido. Porém, ele não reclamou, não fez cara feia. Raramente demonstrava estar chateado com algo, principalmente comigo. Simplesmente assim que chegamos, se pôs em frente ao notebook para escrever. Eu invejava tanta criatividade. 
Alguns ossos do meu corpo haviam sido reconstituídos por ele. Havia sido cirurgião. Eu sentia fortes dores de cabeça e os remédios que tomava, eram por ele administrados religiosamente. Ele nunca se afastava de mim, mantínhamos uma vida solitária em Serra da Saudade. Uma cidadezinha de Minas Gerais com menos de mil habitantes.
Era um homem demasiadamente bom. Havia sido doutrinada a amá-lo e não havia um único dia da minha vida que eu não o amasse com tanta intensidade. 
Ele dedicava-se a escrever. Alguns livros eram para fins científicos, assinados pelo seu verdadeiro nome. Outros levavam pseudônimos famosos, alguns deles femininos.
Eu odiava ler! Mas me esforçava em sentar e conhecer seus textos lendo-os de forma muito investigativa. Como se pudesse compreender como ele possuía uma imaginação tão fértil.
Mas a história de quando nos conhecemos era o meu conto favorito. Achava tão surpreendente quanto intrigante. Ele contava da seguinte forma: 

Passávamos uns dias em La Fattoria dei Monaci, uma espécie de grande fazenda que ficava próxima ao caseifício produtor de parmigianno-regianno, localizado na província de Modena, mais precisamente na Emília-Romanha, Itália. Você viajava com sua irmã e eu com um grupo de amigos da faculdade.
No início de uma bela noite, no céu as estrelas repousavam enquanto eu me movia deixando meu corpo leve ser comandado por meus pés, eles seguiam instintivamente o caminho já previamente traçado pelo destino. Admirando o manto brilhante lá no alto, eu distraído, seguia sem perceber que uma das estrelas estava bem próxima. 
Assim que a encontrei, tive a certeza de que nenhuma outra visão no mundo me seria tão plena. A estrela estava estendida na grama, envolta por um tecido fino, com uma fenda na parte de baixo, que deixava à mostra a maior parte de seu formato, uma de suas mãos enrolavam uma mecha dos seus próprios cachos.
Perguntei se podia fazer-lhe companhia. Descobri que você também era brasileira. Conversamos sobre as músicas que gostávamos de ouvir. Nossos gostos eram bem parecidos. Você falava com muito entusiasmo de sua última viagem ao Norte do Brasil, de como era viver na cidade maravilhosa e me ouviu atentamente sobre Eneida, o poema épico do poeta Virgilio.
Meus amigos tinham ido à Thinkstock, a praça principal e sua irmã saíra com um rapaz que havia conhecido na viagem. Eles estavam desde cedo em Ravena.
Ficamos conversando por longas horas até perceber que o silêncio na fazenda havia ficado tão forte quanto o vento frio que cortava nossos rostos. Mas quando meu braço envolveu seus ombros e você se encolheu para aquecer-se em meu abraço, um barulho ensurdecedor vindo da cozinha do local encheu nossos ouvidos.
Fomos em direção a ele.
Gritamos.
Tudo estava escuro.
Até que surgiu à nossa frente um homem alto e careca, com um bigode enorme, trajando um dólmã branco, na cabeça um toque blanche e que se apresentou a nós como Enrico Montanari.
Ele nos cumprimentou cordialmente embora seu olhar trouxesse o questionamento sobre o motivo de nós dois estarmos ali àquela hora.
Nos convidando para adentrarmos à cozinha, ele disse que vinha do caseifício, e que além de maestri casari era também o dono da fazenda. O homem extremamente gordo e muito forte, trazia nas mãos duas fôrmas de queijo.
Olhamos aquilo muito admirados, pois, as fôrmas pesavam uns 40 quilos cada. Uma delas ele abriu na hora com um machado não tão limpo e nos ofereceu abrindo um vinho, comendo do queijo com tanta rapidez, que era como se não fosse comer nunca mais na vida.
Em seguida colocou o restante do queijo em uma sacola, e pôs a sacola junto com outras 3 ou 4 fôrmas de queijo parmigiano-reggiano em um carrinho. Pediu para que nós o esperássemos ali que nos levaria ao local onde os queijos ficavam guardados. 
Tamanha era a rapidez do homem no consumo do queijo, que ele se ausentou deixando grossos pedaços dele no chão.
Eu recolhi um pedaço da embalagem da faixa de marcação e percebi que a peça que o Sr. Montanari estava a consumir, já tinha uns sete anos de fabricação. Por isso, era valiosíssima.
Esperamos um bom tempo até que ele voltasse, estávamos desejosos de conhecer a produção.
Até que, chegou uma senhora assustada nos perguntando o que estávamos fazendo ali.
Quando ela viu os pedaços de queijo recortados e comidos espalhados pelo chão, ela começou a gritar desesperadamente e nós explicamos que estávamos ali junto com o Sr. Enrico Montanari, o dono da fazenda.
Assim que ouviu esse nome, o semblante da velha deformou-se em uma expressão espantada, pôs a mão no coração e desmaiou.
Antes ela havia tocado um botão preso à parede da cozinha, fazendo com que os seguranças aparecessem ao toque desse botão que fez soar uma campanhinha e, tendo sido chamado a polícia, fomos levados para a delegacia.
Lá soubemos que o Sr. Montanari era o ex-marido da Dona Fátima, o herdeiro de La Fattoria dei Monaci e que havia falecido há mais de quinze anos.
Só fomos liberados porque Dona Fátima acreditou em nós e suspendeu a investigação dando a certeza de que era o espírito do marido que não havia abandonado sua fazenda. Cético, o delegado arquivou o caso meio a contragosto, não sabendo se ria da situação ou se ficava furioso.
Embora, anos mais tarde soubemos que o funcionário que era sim um mestre dos queijos, foi o autor dos roubos naquele dia. Porque a aparição do tal espírito não se sucedeu só naquele dia. Uma forma de parmiggiano-reggiano, vale uns 500 euros. É um dos queijos mais caros do mundo, ainda fabricado quase da mesma maneira que há milênios atrás.
A partir do que passamos naquela noite em Modena, decidimos que não podíamos viver separados, e passamos a viajar juntos: Anatólia, Savran, Bruges, Kalgoorlie, Kelibia... Nosso amor se fortaleceu, nós nos casamos e fomos morar juntos no Sul do nosso Brasil.

Uma outra história, Abílio contava mais breve que a primeira, com os olhos distantes e marejados, parecia muito dolorosa a ele essa lembrança:

Sabe meu amor, como ninguém neste mundo tem o direito de ser feliz como éramos, o mesmo destino que nos uniu de forma tão louca, também nos deu um obstáculo para ser superado.
Havia uma época em que eu trabalhava muito no hospital e você se sentia muito sozinha. Desejou visitar sua irmã que decidiu depois de um tempo, vir morar próximo a nós. 
Quando você me ligou informando que estava voltando para o nosso lar e que sua irmã te acompanharia no caminho de volta, pois iria passar alguns dias do feriado de carnaval conosco, foi aí que tudo aconteceu.
Vocês sofreram um grave acidente na BR-386, que culminou com a internação de ambas. Infelizmente sua irmã... 

Ele sempre embargava nessa parte. Era a hora em que contava que minha irmã havia morrido. Abílio classificava os duros anos que fiquei em coma, como os mais difíceis de sua vida, embora só via sentido na vida, porque vivia cuidando de mim.
O hospital havia se tornado o nosso lar e é por isso que ele se aposentou tão logo eu milagrosamente pude ter alta. 
Assim que abri os olhos, ao sair do coma, eu não lembrava de absolutamente nada. Era como se eu houvesse nascido naquele dia. Minha memória estava totalmente apagada. Nem meu nome eu lembrava. 
Abílio ressaltou que eu perdi os documentos quando o carro explodiu e que a minha sorte é que um motorista que passara na hora, retirou eu e minha irmã antes que o carro explodisse.
E ele se encarregou de nutrir minhas lembranças, tendo a missão de fazer eu me “reapaixonar” por ele. Me explicou sobre um passado que eu não recordava de jeito algum.
Reaprendi a andar, a vestir-me, a falar, a comer, a ler, a escrever...
Além de ter que me acostumar com as marcas que o acidente causou em meu corpo e em meu rosto, apesar da casa não possuir espelhos.
Um dia, pedi para ver algumas de minhas fotos para saber como era a minha antiga aparência e tentar talvez lembrar-me de algo. 
No entanto, fui informada de que havia descartado todos os vestígios do meu antigo rosto a fim de proteger-me. E eu achei mesmo que ele não poderia ter feito coisa melhor, embora nos contentássemos em nos vislumbrarmos um no outro.
Vez ou outra pedia a Abílio para me repetir as mesmas histórias ou dizer como haviam sido as viagens para as cidades que ele citava, e que eu não sabia nem a qual países elas pertenciam.
Sem nem sequer esquecer-se de um só ponto, ele contava tudo, fazendo qualquer um crer que possuía a mais absoluta certeza do que dizia.
Contudo, fazia uns 9 anos que eu havia recobrado a memória. Tinha voltado primeiro como um grão de areia e depois ganhado força estrondosa.
O nome dos meus pais, a minha primeira professora, a forma de como eu me comportava quando criança, a idade do meu primeiro beijo, o nome do cara que eu transei pela primeira vez, o motivo de eu ter quebrado a perna na adolescência, o motivo de meu comportamento arredio com as pessoas à minha volta, a educação regrada dada por meus pais... Tudo isso, segundo Abílio, eu havia contado a ele antes de ter perdido a memória. Mas eram fatos que ele inventava sem saber de que eu já lembrava o meu passado e que Abílio, não estava nele.
O fato de eu ter sofrido um acidente, perdido minha irmã e a memória, eram as únicas verdades que Abílio contava. Antes do acidente, eu nem o conhecia. A primeira vez que o vi, foi quando abri os olhos no hospital. Depois do coma.


_____________________



La fattoria dei Monaci = A fazenda do monge (Nome fictício)
Parmigiano-reggiano = Queijo parmesão original e muito valioso
Maestre casari = Mestre culinário (especialista no preparo dos queijos)
Caseifício ´= Lugar onde se faz queijo
Toque blanche = Chapéu de mestre cuca
Dolmã = Uniforme de chefe de cozinha

27 comentários:

Fernanda disse...

Ola
Adorei poder conferir seu texto, ainda mais pela temática ser muito bem explorada e pela história ser tão instigante. Fiquei com vontade de saber mais a respeito depois que finalizei. Parabéns pela escrita!
Beijos, F

Thiana Santana disse...

Nossa!
Amei amei amei.
Você me fez chorar de verdade.
Acho que me remeteu a algumas coisas por que passei, claro que nada comparado com o que aconteceu com a personagem rsrsrs
De cara quando vi o título do poste já senti que ia me conquistar.
Parabéns pelo texto, tocante, instigante e que me deixou querendo saber mais sobre esses personagens.

Bjs,
Garotas de Papel

Carol Mendes disse...

Nossa, que texto lindooo!
Você escreve muito bem, me peguei lendo e não consegui parar até terminar, foi bem cativante.
Será que tem continuação? <3

Virando Amor

Ivi Campos disse...

Nossa, fiquei muito imersa nesta narrativa. Achei bem curioso a forma como você desenvolveu tudo ao ponto de nos envolver enquanto lia.
MEU AMOR PELOS LIVROS
Beijos

Unknown disse...

Que máximo irmãzinha! Você é meu orgulho.

Danidani disse...

Olá, tudo bom?

Adorei conhecer seu texto, você escreve muito bem. Achei a temática muito bem desenvolvida. Parabéns, você vai longe.

Beijos:*

Isabela disse...

Eitaa, que final foi esse! Complicado.
Mas o texto esta ótimo e ainda nos deixou com um gostinho de quero mais. Parabéns! Pretende continuar a história?
Beijos

Ptiscila disse...

Oii, muito bacana o seu texto e muito intenso também!!! Gosto muito de textos e leituras assim, pois me faz entrar inteiramente na história. Parabéns!!!

beijos

Ingrid Cristina disse...

Olá!

Devo dizer que gostei bastante do seu texto e da forma como você conseguiu explorar bem o assunto, sem ser cansativa ou redundante. Parabéns, você escreve muito bem sim, deve continuar! Fiquei até levemente curiosa para saber o que sucede essa história aí. hahaha Parabéns mais uma vez!

Ingrid Cristina
Plataforma 9 3/4

Marcia Lopes Lopes disse...

Caramba! Até dá um fime de suspense, imagina ter criar uma história na cabeça por não se lembrar de nada!
Adorei!

Diane disse...

Olá...
Adorei seu texto!
Parabéns, pelas seu texto percebo que leva bastante jeito com a escrita. Achei o texto muito interessante e quero voltar aqui para ler mais escritos seus.
Amei <3

COISAS DE DIANE

Diane disse...

Olá...
Adorei seu texto!
Parabéns, pelas seu texto percebo que leva bastante jeito com a escrita. Achei o texto muito interessante e quero voltar aqui para ler mais escritos seus.
Amei <3

COISAS DE DIANE

Livros & Tal disse...

Oieee!!
Gente que ideia fantastica de escrever algo com base em uma imagem!
Perfeito e essa criatividade ai, hein?
Gente você escreve bem demais!! Não consegui interromper a leitura do conto até que ele tivesse acabado e ele deixou aquele gostinho de quero mais, sabe?

Arrassou!

beijos
Livros & Tal

Bru Costabeber disse...

Olá!
Adorei a ideia do seu conto e a forma como ele foi escrito. Fiquei intrigada com a questão da perda de memória e da descoberta dessa pessoa.
Acho que você tem potencial e eu toparia ler uma continuação.
beijos,
Um Oceano de Histórias

Bruna Eduarda disse...

Olá!

Adorei o seu texto e a sua forma de escrita, bem interessante! Então, parabéns pelo texto, realmente está muito bom! ❤️

Um beijo

Minhas Escrituras disse...

Olá, tudo bem??
Nossa super legal conto ein... apesar de eu não curtir tanto esta forma de escrever, achei sua escrita bem envolvente e que prende o leitor... gostei demais... continue assim, quem sabe sai um livro ai ein!!! Xero!

Unknown disse...

Olá tudo bem?
Parabéns pelo belo texto, fiquei tão entretida lendo que quando terminei pensei: "mas já?" Gostei muito da temática abordada e o que aconteceu com a personagem. Você tem uma escrita leve, mesmo tendo um tema forte, e assim cativa o leitor.
Parabéns mais uma vez!

beijinhos!

Suzana Chaves Linhares disse...

Olá! Que legal esse projeto! Legal criar algo a partir de uma palavra. Gostei demais do conto, prendeu bastante minha atenção, gostei como descreveu tudo, foi bem instigante, beijos!

Tamires Marins disse...

Adorei esse texto! \o/ Quando eu pensei que o ápice tinha sido o "espírito"...você me vem com esse final! Como assim, produção?! E como assi ela vai vivendo na mentira, como ela deixa ele pensar que ela ainda está desmemoriada? hhahaahhaha Super plot twist!

Beijos

Delmara Silva disse...

Oi,
que texto maravilhosos. Confesso que quando cheguei até aqui não sabia se leria até o fim, olhei e disse: Nossa que texto enorme!, mas conforme comecei a ler parar foi impossível, a cada instante ansiando por mais e mais, querendo conhecer os próximos acontecimentos. Parabéns mesmo, sua escrita é incrível, seu texto ficou extremamente rico e completo, aconselho que você invista na escrita porque sem sombras de dúvidas você tem o dom.

Beijos!

Alice Martins disse...

Olá, tudo bem?

Uau! Que conto maravilhoso! Você escreve muito bem e consegue tocar o leitor com as suas palavras. Comecei a ler e simplesmente não conseguia parar, a escolha de palavras foi algo muito bem feito e que me deixou bem feliz, pois tudo se encaixa perfeitamente. Fiquei boquiaberta com tudo que li, pois parece divino. O final então, foi o que arrematou tudo, pois me surpreendeu em vários níveis! Parabéns, quero ler mais coisas suas!

Beijos!

Stalker Literária disse...

Oi!
Adorei seu texto, principalmente porque ele está muito rico em detalhes e bem estruturado, nem imagino o quanto deve ser 'difícil' criar uma história em cima de uma simples palavra.

oculoselivros disse...

Olá,

Quem escreve sabe o quanto é difícil colocar o que está na mente no papel e ainda mais quando temos um tema pré determinado, pois mesmo que sem querer isso coloca um pressão a mais em nós. Enfim, o que quero dizer é que você se saiu super bem, conseguiu fazer o que lhe foi proposto e de uma forma muito bacana, que envolve o leitor.

Beijos,
entreoculoselivros.blogspot.com.br/

João Victor Muniz disse...

Opa! Gostei muito, fiquei preso aqui e com gostinho de quwro mais, é muito legal esse projeto, pois estimula a criatividade e apresenta aos leitores do blog novas histórias e escritas, parabéns!

Rayanni Kellsin || @blogumaamanteliteraria disse...

Olá, tudo bem?
Nossa sua escrita me prendeu muito, e eu adorei o seu texto ♥
O projeto é muito bacana, e você tem um talento nato!
Um beijo.

Jessica Santos disse...

Meniiiina que história mais maluca! Amei o conto e acho que encaixou super bem com o tema. Quero saber mais... quero saber que é o Abílio e porque ele fez isso com a protagonista e o que aconteceu depois....
Beijos
Blog Relicário de Papel

Renê Oliveira disse...

Eliziane,

ótimo texto. O enredo foi muito bem construído para a reviravolta final. Demonstração de talento!

Bom final de semana.