04/01/2017

Acordes

"As pessoas que resolviam as coisas em geral tinham muita persistência e um pouco de sorte. Se a gente persistisse o bastante, a sorte em geral chegava. Mas a maioria das pessoas não podia esperar a sorte, por isso desistia." (SORTE - Charles Bukowski)
 

Imagem meramente ilustrativa. Fonte: Omegahits


“Você tem certeza que será bom viajar sozinho?” A pergunta surge em minha mente de maneira forte e real, me passando a sensação de que havia sido repetida, naquele momento. Torcendo levemente o pescoço, olho de soslaio à esquerda como para me certificar de que realmente só eu havia ouvido.
Não sei o que fazer. Já dormi no ônibus mais do que dormira em toda a minha vida e não tenho a mínima vontade de ler uma frase sequer do livro que minha mãe meteu na mochila, mesmo estando agora com ele em mãos.
Era do meu velho.
Nunca nem havia aberto o livro. Sei do que se trata apenas pelo título: Harmonia e improvisação.
Passo as mãos pelos cabelos e miro no reflexo da janela meu penteado desgrenhado em um coque mal feito. Mexo no queixo e dou uma breve alisada na barba que será retirada assim que eu retornar.
Minhas mãos se agitam em minhas pernas e, deixando o livro no banco ao lado, começo a tocar um piano invisível quando o blues de John Lee Hooker começa a reverberar em minha memória, depois meus dedos passam a dedilhar as cordas de uma guitarra imaginária. Em breves instantes eu movo os punhos fechados com baquetas e uma bateria imaginária à minha frente também. Bato os pés no chão acompanhando o compasso. Conforme a canção cresce, meus ombros e cabeça tomam o ritmo de forma enérgica e apaixonada. Uma pantomima executada tranquilamente já que ninguém conseguirá assistir meu show particular e enlouquecido. A escuridão é tão presente que com ousadia eu mordisco o canto do lábio inferior, dou uma piscadela e aponto os dedos indicadores para frente, complacente com a aprovação da platéia.
Paro.
Abro a mochila.
Fecho.
Mexo nos bolsos da calça à procura de algo que eu não faço ideia do que seja, mas que possa me tirar dessa sensação horrenda de não saber o que fazer. Respiro fundo e vasculho ao redor com os olhos imensos alguém com que possa conversar, mas ao que tudo indica, todos dormem. Ou pelo menos a maioria. E eu não suporto mais essa aflição.
Movo-me para direita em direção à janela. As trevas haviam ganhado a estrada lá fora. Levanto-me e vou ao banheiro mesmo sem vontade e quando volto, fico na mesma posição tentando imaginar uma vida perfeita para mim e inventando possibilidades de situações inesperadas e quase impossíveis na minha viagem. E é assim que a fantasia me tira do estado agonizante de tédio.
O dia amanhece e chegamos à rodoviária.
Chego onde eu havia feito minha reserva e depois do check in, sigo apressado para o quarto e largo a mochila no chão ao lado da cômoda, tomo um banho afim de apressado ganhar o mundo com a única tecnologia que trouxe: Minha câmera fotográfica. Na verdade eu só tenho um único sentimento e não é o de ganhar o mundo, mas sim, Capitólio.
A senhora que perguntou se eu tinha a certeza de que seria bom viajar sozinho foi a mesma que insistiu para que eu abandonasse a ideia de não levar o celular comigo. A essa hora ele já teria tocado inúmeras vezes e certamente já devia ter incontáveis mensagens. Mas eu precisava de uma semana longe de tudo, longe do meu mundo assoberbado de pressões e dúvidas.
Volto ao quarto e aviso à minha mãe que havia chegado bem e que ela não precisava se preocupar. Antes que ela pudesse me avisar que alguém havia procurado por mim, eu me apresso em dizer que a próxima ligação seria quando eu estivesse voltando daqui a 5 dias.
Rumo a um dos destinos mais aguardados da Cidade, meus pés se apressam sob meu corpo trêmulo de ansiedade e satisfação. Nunca havia viajado sem que fosse por motivos de trabalho e as viagens eram sempre curtas.
Passo na recepção e tomo algumas informações de como chegar ao meu sonhado Lago de Furnas, confesso mentalmente o que desde o ônibus eu insistia negar: Eu não devia, em uma cidade desconhecia abrir mão quase radicalmente do meu materialismo. Eu precisava do meu aparelho celular agora para me orientar.
Vou seguindo as orientações passadas. Não estou longe. Meus pés seguem programados acompanhando o caminho dos turistas.
Um rapaz negro de óculos escuros e roupa de ciclista coloca seu capacete e monta em uma bike. Ele me lembrou o Fábio bass. Um dos melhores baixista que eu conhecia. Com o pizzicato limpo e a seriedade típica de todo baixista. Ele e o Julio batera faziam um groove massa! Me apelidaram de Jimi. Uma alusão ao melhor guitarrista de todos os tempos. Jimi Hendrix. Quem me dera! 
Talvez o cara que eu vi estivesse indo ou voltando do Morro do Chapéu, o próximo local que eu visitaria. Mas agora era ao famoso Mar de Minas que se voltava todo o meu fôlego. Seus cânions elevados e a água límpida. Todas as minhas expectativas estavam depositadas à beleza que me encantava quando eu pesquisava cada fotografia e cada ponto turístico, como a cachoeira da Lagoa Azul. Tudo, absolutamente tudo já havia me tirado o fôlego bem antes de meus olhos terem a real possibilidade de tocarem cada local. 
Meus olhos brilharam por algo que eu sempre desejei fazer antes de me prender a algo que eu sempre rejeitei. 
Estava satisfeito com a minha rotina cansativa e quase surreal, com o meu sorriso nos lábios e o assédio feminino de todos os shows, da minha carteira com pouco dinheiro e até das incertezas diárias, mas do meu coração batendo forte a cada som era do que eu mais gostava.
Mas neste momento eu acredito veemente que tudo passa. 
Fui comprado por um salário fixo bem pago. Tocar? Só no tempo livre.
Lembro agora com um sorriso sombrio, ocultando o coração pesaroso, da última conversa com o produtor dizendo que contava comigo para uma gravação... 
Que gravação? Não teria gravação! Não comigo.
Eu não ia me render a tocar um ritmo que não suporto, só porque é o mais tocado e o mais pedido. Eu repetia isso revoltado como uma desculpa para as minhas decepções, mas não era só esse o motivo. Também não era por vontade própria. Mas era tão necessário quanto urgente. E eu já tinha tomado minha decisão. 

16 comentários:

carla azevedo disse...

amei o post. que conto lindo.
me vi muito nele, esse vontade do artista de conhecer d viajar.
ele é tao singelo.
parabens pelo texto, eu realmente amei
http://dose-of-poetry.blogspot.com.br/

Eliziane Dias disse...

Gratidão, Carlinha! Obrigada por sua mensagem e obrigada pelo carinho. Me dá uma afliçãozinha esse conto. kkkk Grata por sua visita. Um beijo!

Unknown disse...

Adorei o post!
O texto é lindo! A forma que foi escrito e super delicado e sensível!
Parabéns! <3

Eliziane Dias disse...

Obrigada, flor! <3

Unknown disse...

Ual, que conto instigantes!!! Parabéns pela escrita, está ótima. Vou compartilhar com umas amigas.
Beijos

Eliziane Dias disse...

Compartilhe o quanto quiser, flor! Obrigada pelo elogio! Beijo!

Wesley Ítalo disse...

Que conto bacana!!
Me fez pensar nas vezes que nós abandonamos aquilo que fato amamos e o traçamos por algo mais conviniente ou que os outros aprovam , sem ser a nossa real vontade. Gostei muito quando você fala (o personagem) que ele fica muito feliz por realizar algo que ele queria antes de se prender a algo de que não gostava, por que inúmeras vezes nós temos que fazer isso: nos prender a algo que não nos faz bem, não nos faz feliz. Beijocas *---*

www.facesemlivros.com

Eliziane Dias disse...

Verdade, Wesley! Amei seu comentário! Fico feliz que tenha gostado. Eu amei o seu blog também! <3 Grata pela visita!

O Oculto disse...

Primeiramente quero agradecer, a voce como escritora, pois a leitura me prendeu tanto que ao final fiquei com vontade de ler mais suas palavras, o fato que nem sempre oque e melhor para nos e oque queremos, a maneira que o personagem faz suas escolhas.
PArabens pelos contos voce escreve muito bem. uma escrita fina.

Eliziane Dias disse...

Bom saber disso! Hehe! Obrigada pela visita! Seu blog também é maravilhoso!

Anônimo disse...

Oii!
Amei conhecer seu blog e adorei o conto, flor ♥ Você escreve super bem, já pensou em escrever um livro? Parabéns pelo texto!

Beijão!
http://romantizandobook.blogspot.com.br/

Eliziane Dias disse...

Obrigada, flor! Já pensei sim! Bjs!

Nathalie Louzada disse...

Olá! Tudo bem?
Que texto maravilhosamente bem escrito!!! Adorei ler. Tem continuação? Quero saber o que acontece com o cara... Hahaha
Beijos

Prosápia Social disse...

O que vai acontecer com ele? Que suspense! Preciso de saber! Muito boa resenha 😉

Vitor Costa disse...

Muito interessante a descrição do narrador sobre o seu processo criativo e também sobre a sua percepção de mundo.

Gosto de conteúdo assim! Parabéns!

O Mundo Em Cenas

Lary Zorzenone disse...

Adorei o texto. Eu acho que viajar sozinho é uma excelente opção.

Vidas em Preto e Branco