"As pessoas que resolviam as coisas em geral tinham muita persistência e um pouco de sorte. Se a gente persistisse o bastante, a sorte em geral chegava. Mas a maioria das pessoas não podia esperar a sorte, por isso desistia." (SORTE - Charles Bukowski)
Imagem meramente ilustrativa. Fonte: Omegahits |
“Você tem certeza que será bom viajar
sozinho?” A pergunta surge em minha mente de maneira forte e real, me passando
a sensação de que havia sido repetida, naquele momento. Torcendo levemente o
pescoço, olho de soslaio à esquerda como para me certificar de que realmente só
eu havia ouvido.
Era do meu velho.
Nunca nem havia aberto o livro. Sei do que
se trata apenas pelo título: Harmonia e improvisação.
Passo as mãos pelos cabelos e miro no
reflexo da janela meu penteado desgrenhado em um coque mal feito. Mexo no
queixo e dou uma breve alisada na barba que será retirada assim que eu retornar.
Minhas mãos se agitam em minhas pernas e,
deixando o livro no banco ao lado, começo a tocar um piano invisível quando
o blues de John Lee Hooker começa a reverberar em minha memória, depois
meus dedos passam a dedilhar as cordas de uma guitarra imaginária. Em breves
instantes eu movo os punhos fechados com baquetas e uma bateria imaginária à
minha frente também. Bato os pés no chão acompanhando o compasso. Conforme a
canção cresce, meus ombros e cabeça tomam o ritmo de forma enérgica e
apaixonada. Uma pantomima executada tranquilamente já que ninguém conseguirá
assistir meu show particular e enlouquecido. A escuridão é tão presente que com
ousadia eu mordisco o canto do lábio inferior, dou uma piscadela e aponto os
dedos indicadores para frente, complacente com a aprovação da platéia.
Abro a mochila.
Fecho.
Mexo nos bolsos da calça à procura de algo
que eu não faço ideia do que seja, mas que possa me tirar dessa sensação
horrenda de não saber o que fazer. Respiro fundo e vasculho ao redor com os
olhos imensos alguém com que possa conversar, mas ao que tudo indica, todos
dormem. Ou pelo menos a maioria. E eu não suporto mais essa aflição.
Movo-me para direita em direção à janela.
As trevas haviam ganhado a estrada lá fora. Levanto-me e vou ao banheiro mesmo
sem vontade e quando volto, fico na mesma posição tentando imaginar uma vida
perfeita para mim e inventando possibilidades de situações inesperadas e quase
impossíveis na minha viagem. E é assim que a fantasia me tira do estado
agonizante de tédio.
O dia amanhece e chegamos à rodoviária.
Chego onde eu havia feito minha reserva e
depois do check in, sigo apressado para o quarto e largo a mochila no chão ao
lado da cômoda, tomo um banho afim de apressado ganhar o mundo com a única
tecnologia que trouxe: Minha câmera fotográfica. Na verdade eu só tenho um
único sentimento e não é o de ganhar o mundo, mas sim, Capitólio.
A senhora que perguntou se eu tinha a
certeza de que seria bom viajar sozinho foi a mesma que insistiu para que eu
abandonasse a ideia de não levar o celular comigo. A essa hora ele já teria
tocado inúmeras vezes e certamente já devia ter incontáveis mensagens. Mas eu
precisava de uma semana longe de tudo, longe do meu mundo assoberbado de pressões
e dúvidas.
Volto ao quarto e aviso à minha mãe que
havia chegado bem e que ela não precisava se preocupar. Antes que ela pudesse
me avisar que alguém havia procurado por mim, eu me apresso em dizer que a
próxima ligação seria quando eu estivesse voltando daqui a 5 dias.
Rumo a um dos destinos mais aguardados da
Cidade, meus pés se apressam sob meu corpo trêmulo de ansiedade e satisfação.
Nunca havia viajado sem que fosse por motivos de trabalho e as viagens eram
sempre curtas.
Passo na recepção e tomo algumas
informações de como chegar ao meu sonhado Lago de Furnas, confesso mentalmente
o que desde o ônibus eu insistia negar: Eu não devia, em uma cidade desconhecia
abrir mão quase radicalmente do meu materialismo. Eu precisava do meu aparelho
celular agora para me orientar.
Vou seguindo as orientações passadas. Não
estou longe. Meus pés seguem programados acompanhando o caminho dos turistas.
Um rapaz negro de óculos escuros e roupa de
ciclista coloca seu capacete e monta em uma bike. Ele me lembrou o Fábio bass.
Um dos melhores baixista que eu conhecia. Com o pizzicato limpo e a seriedade
típica de todo baixista. Ele e o Julio batera faziam um groove massa! Me
apelidaram de Jimi. Uma alusão ao melhor guitarrista de todos os tempos. Jimi
Hendrix. Quem me dera!
Talvez o cara que eu vi estivesse indo ou
voltando do Morro do Chapéu, o próximo local que eu visitaria. Mas agora era ao famoso Mar de
Minas que se voltava todo o meu fôlego. Seus cânions elevados e a água límpida.
Todas as minhas expectativas estavam depositadas à beleza que me encantava
quando eu pesquisava cada fotografia e cada ponto turístico, como a cachoeira
da Lagoa Azul. Tudo, absolutamente tudo já havia me tirado o fôlego bem antes
de meus olhos terem a real possibilidade de tocarem cada local.
Meus olhos brilharam por algo que eu sempre
desejei fazer antes de me prender a algo que eu sempre rejeitei.
Estava satisfeito com a minha rotina
cansativa e quase surreal, com o meu sorriso nos lábios e o assédio feminino de
todos os shows, da minha carteira com pouco dinheiro e até das incertezas
diárias, mas do meu coração batendo forte a cada som era do que eu mais
gostava.
Mas neste momento eu acredito veemente que
tudo passa.
Fui comprado por um salário fixo bem pago.
Tocar? Só no tempo livre.
Lembro agora com um sorriso sombrio,
ocultando o coração pesaroso, da última conversa com o produtor dizendo que
contava comigo para uma gravação...
Que gravação? Não teria gravação! Não
comigo.
Eu não ia me render a tocar um ritmo que
não suporto, só porque é o mais tocado e o mais pedido. Eu repetia isso
revoltado como uma desculpa para as minhas decepções, mas não era só esse o
motivo. Também não era por vontade própria. Mas era tão necessário quanto
urgente. E eu já tinha tomado minha decisão.
16 comentários:
amei o post. que conto lindo.
me vi muito nele, esse vontade do artista de conhecer d viajar.
ele é tao singelo.
parabens pelo texto, eu realmente amei
http://dose-of-poetry.blogspot.com.br/
Gratidão, Carlinha! Obrigada por sua mensagem e obrigada pelo carinho. Me dá uma afliçãozinha esse conto. kkkk Grata por sua visita. Um beijo!
Adorei o post!
O texto é lindo! A forma que foi escrito e super delicado e sensível!
Parabéns! <3
Obrigada, flor! <3
Ual, que conto instigantes!!! Parabéns pela escrita, está ótima. Vou compartilhar com umas amigas.
Beijos
Compartilhe o quanto quiser, flor! Obrigada pelo elogio! Beijo!
Que conto bacana!!
Me fez pensar nas vezes que nós abandonamos aquilo que fato amamos e o traçamos por algo mais conviniente ou que os outros aprovam , sem ser a nossa real vontade. Gostei muito quando você fala (o personagem) que ele fica muito feliz por realizar algo que ele queria antes de se prender a algo de que não gostava, por que inúmeras vezes nós temos que fazer isso: nos prender a algo que não nos faz bem, não nos faz feliz. Beijocas *---*
www.facesemlivros.com
Verdade, Wesley! Amei seu comentário! Fico feliz que tenha gostado. Eu amei o seu blog também! <3 Grata pela visita!
Primeiramente quero agradecer, a voce como escritora, pois a leitura me prendeu tanto que ao final fiquei com vontade de ler mais suas palavras, o fato que nem sempre oque e melhor para nos e oque queremos, a maneira que o personagem faz suas escolhas.
PArabens pelos contos voce escreve muito bem. uma escrita fina.
Bom saber disso! Hehe! Obrigada pela visita! Seu blog também é maravilhoso!
Oii!
Amei conhecer seu blog e adorei o conto, flor ♥ Você escreve super bem, já pensou em escrever um livro? Parabéns pelo texto!
Beijão!
http://romantizandobook.blogspot.com.br/
Obrigada, flor! Já pensei sim! Bjs!
Olá! Tudo bem?
Que texto maravilhosamente bem escrito!!! Adorei ler. Tem continuação? Quero saber o que acontece com o cara... Hahaha
Beijos
O que vai acontecer com ele? Que suspense! Preciso de saber! Muito boa resenha 😉
Muito interessante a descrição do narrador sobre o seu processo criativo e também sobre a sua percepção de mundo.
Gosto de conteúdo assim! Parabéns!
O Mundo Em Cenas
Adorei o texto. Eu acho que viajar sozinho é uma excelente opção.
Vidas em Preto e Branco
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