05/01/2018

(Em) Ponderando


          Um copo com água lhe foi entregue. Estava à sua frente, depositado na mesa. Segurava um pedaço de papel em uma das mãos, que servia para abarcar as lágrimas que caíam enquanto relatava diversas violências que sofreu, quando sofreu, onde sofreu e quem as fez sofrer.

          Com a escuta atenta, disfarçando a expressão tensa, eu teria que saber qual o tipo de violência. Se psicológica, sexual, moral, física ou patrimonial. Pelo relato prestado, foram todas. É nosso dever especificar o tipo de agressão e, como tenho “sorte”, em meu primeiro atendimento no estágio de psicologia em um local que atende mulheres vítimas de violência doméstica, tinha mesmo que ser alguém muito sofrido.

          Dentre muitas consequências da violência, estão pesadelos constantes durante a noite e uma reação fisiológica que constrange a vítima por se desencadear toda vez que seu cérebro percebe que ela está em perigo, mesmo que o agressor esteja a quilômetros de distância. Qualquer traço fisionômico semelhante, já provoca nela uma sensação nauseante.

          A vida que vivia, não era dela, estava em posse de seu companheiro que de forma bem hostil, a utilizou como quis, determinando ao seu modo como ela deveria comportar-se e principalmente, onde ela não deveria ir. Como se fosse possível alguém apreender e enclausurar a volição alheia.

         Olhando para o papel em suas mãos, percebo que ele se desfaz a cada palavra por ela proferida. Ela o esfrega, o reduz em pequenos pedaços, o esfarela...

          Olho para aquela cena enquanto escuto várias outras situações constrangedoras a que foi submetida, percebendo que ela faz ao papel, o que a ela foi feito.

          "Eu posso beber água?" – perguntou.

          “Você não precisa me pedir permissão para beber um copo de água que é seu” – respondi.

          Mais lágrimas caíram de seu rosto ao se tocar sobre o peso de submissão e nulidade que sua vida havia se tornado. 

          Corri os olhos sobre a mesa à procura de um objeto. Pego um peso de papel com uma bela flor no topo e digo: “Se eu o coloco aqui no centro desta mesa e saímos da sala, ele ainda estará aqui quando retornarmos. Ele não tem vida, nem vontade própria, não pode se locomover sem que eu ou qualquer outra pessoa o tire daqui.”

          Novas lágrimas, para um drama antigo...

          Novos embargos...

          Novas situações relatadas...

          Novas intervenções realizadas e...

          Depois de tudo, um novo olhar! 

          Uma pausa longa no choro e nos tremores de suas mãos.

          Para depois de vários instantes, um sorriso invadir-lhe a face, compreensão e empatia encherem os semblantes e ambas as expressões se tornarem leves.

          E como um objeto que, ao cair no chão devido à gravidade, provoca um ruído estrondoso, sua consciência se refaz de forma súbita e o turbilhão de expectativas que se deu naquele espaço foi ensurdecedor.

          Então, terminado o acolhimento, ouvi várias promessas de retorno, recebo um sorriso, um abraço e um agradecimento. Mas fui eu quem agradeceu mesmo de forma silenciosa, por testemunhar algo poderoso. Pois, pela força que seus olhos expressavam, eu imaginava que mais uma fortaleza se levantava e as consequências de suas ações ao erguer-se, poderiam ser bem mais avassaladoras. Porque quando alguém quebrado busca energia para se restabelecer, é quase impossível que forças externas, a paralisem novamente.

          E logo depois de terminado o atendimento, ponderei e percebi que descobri na prática o que o significado de empoderar elucida. Que é encarregar, confiar a alguém, dar poder, atribuir a alguém ou a si mesmo... Ou seja, não permitir que alguém anule sua liberdade de tomar decisões sobre sua própria vida.

          A não concessão de qualquer tipo de violência é algo muito novo para uma mulher e fisicamente ela já estava livre de toda opressão, mas cada agressão ainda a aprisionavam em dores violentas.

          Há muitos anos atrás, meu sonho era lidar com esse tipo de situação e eu jamais imaginei que pudesse ser tão difícil, tanto o durante, como o depois do atendimento.

          Pois agora, entendo que não sei exatamente se estava certa quando pude olhar para ela há alguns meses atrás e julgar ter encontrado nela força para que ela mesma comande sua própria vida e tome suas próprias decisões. Mas não posso dizer também que eu estava errada, porque talvez tenha partido dela mesma, a decisão de não mais me procurar.

31 comentários:

Larissa Dutra disse...

Olá, tudo bem? Muito bacana e importante esse teu texto, gostei muito! É uma história bem reflexiva.

Beijos,
https://duaslivreiras.blogspot.com.br/

Clayci disse...

Forte, mas necessário.
É triste pq é uma cena comum e real. Esse texto é ideal para refletirmos e nos apoiarmos =/

Saga Literária disse...

Olá, tudo bem?
Achei bem interessante e forte o texto, muito reflexivo, isso só reflete a história de milhares ou milhões de mulheres no momento!
Abraço

Karem Almeida disse...

Que texto. Acabo ficando sem palavras, porque sem duvida conhecemos pessoas que passam ou passaram por situações que precisaram e ainda necessitam de se empoderar.

http://imagine-livros.blogspot.com.br/

Sweet Natie disse...

Oiiee, tudo bom?
Adorei o post, ele ficou muito bom além de se tratar de um assunto não muito falado nas mídias! É muito importante estarmos sabendo como lidar e ajudar ao próximo, agressão é coisa seria e é um crime grave. Ninguém deveria passar por isso. Ameei ^^

Eu meus livros e você disse...

Oi tudo bem?
Adorei seu texto. Acho muito importante tudo que você abordou nele. Parabéns. Um texto que nos faz refletir muito.

Fernanda Santos Barroso disse...

No início eu me perguntei se era uma experiência verdadeira, que realmente tinha passado, mas aí percebi que isso não importa. É uma história verdadeira, porque é algo que muitas mulheres passam. Infelizmente é algo que é frequente na vida de muitas pessoas. Só podemos tentar ajudar quando elas procuram essa ajuda e ensinar ao máximo de pessoas possíveis, desde a sua infância, a como tratar e respeitar o próximo.
Adorei o texto!

Abraços,
https://literaleitura2013.blogspot.com.br/

Felipe Cunha Germano disse...

Uau, que texto cheio de emoções e sentimentos.
Cheguei a ficar com um aperto no coração aqui, imaginando a cena. Deve ser, e é, muito difícil lidar com situações como essa, principalmente para quem tem que relatar tanta coisa sofrida. Lindo texto.

Eliziane Dias disse...

Grata pelo comentário!

Eliziane Dias disse...

Mas foi real! Grata pelo comentário! Bjs!

Eliziane Dias disse...

Oi! Tudo! Grata pelo comentário! Abçs!

tamara padilha disse...

Sempre importante falarmos da violência, pois diariamente, milhares de mulheres a sofrem, como você bem ilustrou no seu texto. É duro? É sim. É doloroso? É sim. Mas acima de tudo precisa ser discutido para que menos pessoas sejam atingidas por isso.

Tainá disse...

Uau! Esse texto foi forte ♥ Parabéns pela escrita, que seu texto alcance mais pessoas para que elas possam refletir sobre um assunto tão importante quanto esse! Beijoo ♥

Eliziane Dias disse...

Verdade! Grata pelo comentário!

Eliziane Dias disse...

Oi! Tudo bom!
Que bom que gostou!
Grata pelo comentário!

Marcia Lopes Lopes disse...

Forte e pertinente, pois muitas passamos por isso e eu sei disso de cadeira, como mudar não sei, mas eu tento assim como vc! Bjs

Eliziane Dias disse...

Oi! Tudo bom!
Que bom que gostou!
Grata pelo comentário!

Eliziane Dias disse...

Foi uma experiência pessoal, Fernanda!
Sim! É ainda algo muito frequente na vida de milhares de mulheres.
Que bom que gostou do texto.
Abração!

Eliziane Dias disse...

Gratidão pelo comentário!
Você conseguiu compreender o texto da forma como eu o escrevi.
Foi sim, algo que mexeu muito comigo.
Um beijo!

Eliziane Dias disse...

É isso, ai!
Grata pelo coments!

Eliziane Dias disse...

Amém! rsrs
Gratidão pelos elogios e pelo comentário! Beijoooo

Eliziane Dias disse...

Só dá para mudar dizendo Basta!
Te desejo sorte e força!
Beijão!

Anônimo disse...

Que texto profundo e necessário! Reflete a situações de milhares de mulheres nesse mundo misógino em que vivemos.
Parabéns.

https://quiosqueliterario.blogspot.com.br/

Unknown disse...

Oii! Nossa que texto lindo e emocionante, me fez lembrar de um livro que estou lendo e que também fala sobre uma mulher que sofria violência doméstica. E é muito emocionante e admirável quando a mulher consegue criar forças para seguir em frente depois de todo o sofrimento. Ótimo texto, bjss!

Stalker Literária disse...

Oi!
Adorei seu texto, empoderamento, violência contra a mulher, abuso são temas que devem ser discutidos sempre, pois só assim mais pessoas vão entender a situação e quem sabe um dia possamos mudar esse comportamento

Maria Luíza Lelis disse...

Olá, tudo bem?
Seu texto é realmente muito forte, pois, infelizmente, ele se aplica à realidade de milhares de mulheres. Um texto importante e reflexivo. Parabéns!
Beijos!

Marijleite disse...

Amei seu post. Fazer com que uma mulher vítima de violência em uma relação que deveria ser de amor possa voltar a se sentir dona de si, empoderada, é uma missão difícil mas necessária.

petalasdeliberdade.blogspot.com

Jéssica Melo disse...

Olá Eliziane, seu texto esta extremamente tocante e delicado, deve ser um trabalho bem forte lida com mulheres que sofreram tanto, mas também deve ser bem reconfortante pode mesmo que só um pouco ajuda-las.

Catharina M. disse...

Olá
nossa, que tapão. Muito bom o texto e o modo que retrata a realidade, adorei ver isso por aqui e com certeza me fez refletir muito, vou salvar para reler

beijos
http://www.prismaliterario.com.br/

Ana Caroline Santos disse...

Olá, tudo bem? Que texto mulher, QUE TEXTO! Vontade de mandar para várias pessoas para ver se entendem o que isso significa e o quanto deve ser importante. Escreve mais sobre, adorei!
Beijos,
diariasleituras.blogspot.com.br

ANGÉLICA disse...

Oi, tudo bem?
Este é um tema que devemos debater sempre, é importante!
Bjs